Uma católica (ex)perplexa
Há alguns dias, tive a oportunidade de ouvir uma conferência muito interessante sobre patrística. Via-se que o sacerdote que a proferiu amava a Igreja e achava maravilhoso como os Padres nos primeiros séculos foram compreendendo as verdades que Cristo lhes havia prometido que compreenderiam com a ajuda do Espírito Santo.
Chegada a vez das perguntas, no entanto, foi levantada a ruptura e as contradições “que alguns afirmam” que existem entre o Concílio Vaticano II e toda a Igreja anterior. O sacerdote palestrante afirmou que era impossível que a Igreja se contradissesse; que Niceia e o Vaticano II eram a mesma coisa; a mesma Igreja. É o mesmo exercício de malabarismo que realizou Bento XVI para assegurar a hermenêutica da continuidade na qual praticamente ninguém mais acredita: que a continuidade se dá no sujeito Igreja, como afirma o P. Gabriel Calvo Zarraute, fazendo vista grossa à imensidão de transformações e contradições no “conteúdo”. De fato, Paulo VI foi ainda mais longe ao dizer a Mons. Marcel Lefebvre que o Vaticano II era “mais que Niceia”. E é o que parece hoje, porque raramente se veem citações em documentos magisteriais anteriores ao Concílio Vaticano II.
Após o Concílio, a hierarquia da Igreja lançou uma imensa campanha propagandística dos púlpitos e dos documentos, argumentando que tudo estava mudando, que era necessário se adaptar aos tempos e ao homem atual, e que tudo isso era bom. Que o anterior já não era possível, nem viável nem desejável: que a rigidez da Igreja “tradicional” tornava impossível uma comunicação com “o homem de hoje”. E que uma nova “primavera” e uma nova era se abriam após o Concílio Vaticano II.
A campanha propagandística incluiu silenciar e minimizar os dolorosos lamentos e resistência de tantos fiéis, sacerdotes, religiosos e leigos que viam nas inovações uma nova igreja, sem correspondência com a doutrina, a moral e a liturgia anterior. A nós que nascemos em um momento de consolidação do Espírito do Concílio, o que nos fizeram entender é que “havia havido uma mudança” em algum momento recente, como se não tivesse sido traumático, e que agora tudo era melhor, havia uma primavera eclesial, com guitarras, que criaria um diálogo frutífero entre a Igreja e o mundo e voltaria a tornar a Igreja relevante na sociedade.
É no entanto chocante descobrir os casos concretos em que a história não aconteceu precisamente assim. Os casos dolorosos, como dizia, e de resistência para salvaguardar e transmitir intacto o depósito da fé e a liturgia de sempre, cujo caso mais conhecido é Monseñor Marcel Lefebvre, mas que não foi de forma alguma o único. Se se lerem os documentos dos anos 1960, em que se descrevem em tempo real as mudanças vertiginosas que estavam acontecendo, o caos absoluto, a sensação de ruptura, de tabula rasa, fica-se com o coração apertado. Por isso, gostaria em alguns desses textos apresentar alguns casos de pessoas concretas que lutaram pela defesa e restauração da tradição da Igreja em décadas convulsas; a contracorrente e sendo minoria.
E começaremos hoje com a fascinante história de a irmã Wilhelmina Lancaster, fundadora das Benedictinas de Maria, Rainha dos Apóstolos, nos Estados Unidos da América.
A irmã Wilhelmina se tornou muito popular quando, em abril de 2023, seu corpo foi encontrado incorrupto quatro anos após sua morte, como relatou, entre outros, InfoVaticana. Após seu falecimento em 2019, a irmã Wilhelmina foi enterrada sem nenhum tipo de embalsamamento pelas religiosas de sua comunidade, que testemunham como simplesmente, com um sacerdote da Fraternidade de São Pedro, a lavaram, vestiram um hábito limpo e a colocaram em um caixão de madeira muito simples. O caixão foi forrado com um material sintético, parecido com cetim, o caixão foi fechado e ela foi enterrada diretamente na terra. Não havia nenhum tipo de proteção contra os elementos nem contra a alta umidade do solo em que foi enterrada. Por isso foi ainda mais surpreendente o que aconteceu quase quatro anos depois, quando as irmãs estavam dando os toques finais à igreja de sua abadia e construindo um santuário dedicado a São José em um altar lateral, e pensaram que seria um lugar adequado para conservar os restos da irmã Wilhelmina. Assim, a madre abadessa iniciou o processo de exumação. Havia irmãs escavando a sepultura e não esperavam encontrar nada extraordinário. Algumas pessoas lhes disseram que provavelmente só encontrariam ossos. Mas quando abriram o caixão, o primeiro que a madre abadessa viu foi um pé muito intacto, tal como estava quando a depositaram no caixão originalmente.
O revestimento do caixão se havia desintegrado completamente, mas o corpo da irmã Wilhelmina, notavelmente intacto, ainda tinha o hábito completo, e não apresentava desgaste nem sinais de musgo ou desintegração das fibras naturais. Tudo estava perfeitamente ali, tendo estado sepultado durante quatro anos em um terreno muito úmido.
Assim foi como, em abril de 2023, a irmã Wilhelmina se tornou conhecida mundialmente e desde então milhares de pessoas acorrem à sua abadia para venerar seu corpo incorrupto, que as irmãs colocaram no altar lateral, dedicado a São José, com uma cobertura transparente, para que os visitantes que entram na igreja possam ver a irmã Wilhelmina intacta.
A incorruptibilidade de seu corpo chamou a atenção para a vida desta religiosa afro-americana, uma vida de valente combate pela tradição litúrgica da Igreja que vale a pena conhecer.
Eric Sammons entrevistou em setembro de 2023 a irmã Maria Josefa, irmã da comunidade de Sor Wilhelmina; entrevista cujo enlace deixo aqui, e da qual ofereço excertos que me parecem fundamentais para conhecer esta mulher tão extraordinária, uma santa tradicional atual, como a define Sammons.
Na entrevista, faz-se um repasse da vida familiar e vocação da Irmã Wilhelmina. Lemos que nasceu em São Luís em 1924, em uma época de grandes conflitos raciais, e no seio de uma família muito pobre, mas com uma fé católica muito viva. Uma das bisavós da irmã Wilhelmina havia sido escrava e foi libertada por seu amo depois de que ela e seu filho fossem batizados.
Conta a irmã Maria Josefa que “a irmã Wilhelmina recebeu sua vocação muito cedo, após receber a primeira comunhão. Enquanto rezava, ouviu nosso Senhor lhe dizer em seu coração: ‘Queres ser toda minha?’. E ela respondeu: ‘Claro que quero ser toda tua’. Mas ainda não sabia o que isso significava. Só mais tarde, quando começou a ouvir falar das religiosas, se deu conta de que a vocação religiosa é a forma em que uma alma pode pertencer completamente a Cristo como esposa”. E ingressou na vida religiosa muito jovem, aos 17 anos, logo após terminar o ensino médio (um colégio católico para crianças negras que seus pais ajudaram a fundar em São Luís e no qual Wilhelmina foi a melhor aluna da primeira turma). “Assim, a irmã Wilhelmina – explica a irmã Maria Josefa – deixou uma vida familiar muito bonita e embarcou na vida religiosa aos 17 anos, e serviu com muita fé e devoção durante mais de 50 anos”.
No contexto de segregação racial que se vivia nos Estados Unidos, não era simples que qualquer ordem religiosa aceitasse uma vocacionada negra, assim que não teve muitas opções onde escolher. Juntou-se às Irmãs Oblatas da Providência, fundadas no século XVIII por uma mulher negra, a mãe Mary Lange, para a educação cristã das crianças pequenas, especialmente as negras ou mestiças, que não tinham oportunidades de receber educação. Esta primeira ordem à qual a irmã Wilhelmina pertenceu tinha raízes beneditinas: a fundadora se inspirou na rama terciária / oblata beneditina que São Francisco de Roma havia fundado muitos séculos antes. Portanto, a ordem tinha uma espiritualidade muito beneditina.
Na década de 1960, a irmã Wilhelmina era religiosa e professora das Irmãs Oblatas da Providência em uma escola da congregação em Baltimore. Ao longo de vinte anos, havia sido docente em diversas escolas em bairros marginais. Foi nesses anos quando as coisas começaram a mudar radicalmente na Igreja. A irmã Maria Josefa não duvida em comentar que “foi uma fonte de dor para ela quando a experimentação dos anos 1960 e 1970 começou a afetar sua ordem” (…). Não é que visse a experimentação com nostalgia, como se sempre devêssemos fazer o que sempre temos feito, mas que reconhecia que a experimentação estava tocando pontos muito vitais da vida religiosa. As irmãs começaram a deixar de lado o hábito tradicional e começaram a se vestir como mulheres leigas; abandonaram a oração comunitária ou o silêncio no claustro e se envolveram muito em atividades leigas, mais atividades de trabalho social, e como continuavam sendo uma ordem negra, inclusive em movimentos de orgulho racial. E então a irmã Wilhelmina se deu conta de que estavam começando a perder suas raízes. Estavam deixando de lado as coisas que haviam salvaguardado sua identidade como esposas de Cristo”.
Diante destas circunstâncias, Eric Sammons se pergunta por que a Irmã Wilhelmina permaneceu na Congregação ante estes mudanças que lhe causavam tanto sofrimento. A esta pergunta, a irmã Maria Josefa responde que a Irmã Wilhelmina “sofreu e rezou durante muitos anos para tentar que suas irmãs voltassem às tradições que haviam abandonado. Inclusive tentou formar uma rama tradicional de sua ordem que conservasse essas coisas.
Em um artigo publicado em Catholic World Report, podemos ler como “durante seus 50 anos de vida religiosa, a irmã Wilhelmina foi testemunha das mudanças que o Concílio Vaticano II trouxe consigo e tentou preservar o hábito. ‘Passou muitos anos lutando pelo hábito’, disse a mãe Cecilia, que afirmou que a irmã Wilhelmina se levava muito a sério a ideia de que o hábito simboliza quem o usa como esposa de Cristo. Segundo sua biografia (“The life of Sr. Mary Wilhelmina”, escrita por religiosas de sua ordem), fez um hábito para si mesma quando suas irmãs já o haviam abandonado, criando partes do véu com uma garrafa de plástico de alvejante.
A irmã Wilhelmina tinha um grande senso de lealdade, pelo que esperava que, em vez de começar de novo, pudesse reformar a comunidade que amava. E apelou a diferentes irmãs daquela comunidade. Inclusive escreveu à hierarquia em Roma pedindo ajuda e orientação naquela situação. Assim que tentou muitas vias antes de chegar ao extremo de abandonar a comunidade.
Uma questão decisiva era a liturgia. Não se tratava somente de que suas irmãs tivessem tirado o hábito religioso e se vestissem de seculares e se dedicassem a um ativismo que bem poderiam desempenhar leigos; mas que lhe doía profundamente a perda da liturgia tradicional; mas estava atada ao que era: isto é, era uma irmã oblata da Providência, tinha que fazer o que faziam as irmãs e rezar como sua congregação, com os novos breviários e o Missal de Paulo VI.
A irmã Maria Josefa explica como, ao longo dos anos, a Irmã Wilhelmina apelou a Roma em diferentes ocasiões sobre a liturgia. De maneira muito contundente, em uma carta dizia: “Não precisamos de um rito africano. Não precisamos de um rito americano. Não precisamos de um rito afro-americano. Precisamos do rito latino católico romano”. Infelizmente, teve que sofrer e esperar muitos, muitos anos para consegui-lo.
Mas as coisas mudaram para a liturgia tradicional em 1988 com os indults concedidos pelo papa João Paulo II e assim, a irmã Wilhelmina voltou a descobrir a missa em latim em uma paróquia indultada de Washington D. C. e recordou todas as graças que lhe havia aportado a antiga liturgia e o quão adequada que era para a vida religiosa, pelo que decidiu assistir a essa missa sempre que pudesse. Enquanto tanto, continuou tentando que suas irmãs voltassem ao modo de vida que haviam abandonado, mas finalmente se deu conta de que era muito difícil reformar; que em certo modo era mais fácil começar do zero. Assim que, após mais de 50 anos de votos religiosos e com mais de 70 anos, decidiu deixar sua comunidade, que havia sido sua família religiosa, e começar uma nova, reconhecendo o valor das tradições religiosas que se haviam perdido e pretendia recuperar”.
A Fraternidade de São Pedro se cruzou providencialmente no caminho da irmã Wilhelmina e seu desejo de vida religiosa tradicional: soube que a FSSP estava criando um grupo de irmãs, o que supôs o impulso definitivo para partir de sua comunidade posto que, além disso, havia entrado em contato com outras duas religiosas que também buscavam voltar à observância religiosa tradicional. A Fraternidade de São Pedro lhes propôs criar uma comunidade de irmãs ativas que ajudassem os sacerdotes em seu trabalho paroquial e na catequese. Tinham a missa de sempre em latim, tinham a possibilidade da observância religiosa tradicional e eram uma pequena comunidade de três membros. O sacerdote que as acolheu sob sua proteção foi o padre Arnaud Devillers, um sacerdote francês da Fraternidade Sacerdotal de São Pedro, que reconheceu a fidelidade da irmã Wilhelmina e sua devoção pela vida religiosa, pelo que a nomeou superiora desta pequena comunidade, confiando-lhe sua guia e direção espiritual.
A irmã Wilhelmina, no entanto, só ocupou o cargo de superiora durante um ano, já que àquelas alturas era de idade avançada, e acabou pedindo a uma das irmãs mais jovens que assumisse a responsabilidade da liderança. Mas naquele primeiro ano sentaram as bases da jovem comunidade: haviam decidido que sua espiritualidade seria a beneditina. Decidiram que sua vida imitasse a de Nossa Senhora Rainha dos Apóstolos no Cenáculo após a Ascensão de nosso Senhor, quando se reuniu com os apóstolos, esperando a chegada do Espírito Santo. Originalmente, chamou à comunidade Oblatas de Maria Rainha dos Apóstolos; como inspirada pelo nome de Oblatas por sua anterior família religiosa, as Oblatas da Providência, mas lhe deu um caráter mariano dedicado a Nossa Senhora Rainha dos Apóstolos porque elas pretendiam estar a serviço dos sacerdotes. Com o passar do tempo, discerniram uma vocação monástica mais contemplativa, pelo que se separaram da FSSP no que respeita à vida cotidiana, mas continuaram sendo atendidas por seus sacerdotes. Decidiram que não teriam um ministério ativo, mas que apoiariam os sacerdotes de uma maneira mais oculta, oferecendo um lugar de retiro para sacerdotes e confeccionando vestimentas sacerdotais para se sustentarem economicamente. Ao mesmo tempo, se formaram para se converterem em beneditinas de pleno direito.
A nova comunidade, que começou em Scranton, Pensilvânia, seguia a Regra de São Bento, cantava o tradicional Ofício Divino beneditino em latim e se celebrava em sua abadia a Missa tradicional. A Madre Cecilia explica como “sempre me emociona que recitemos os salmos na ordem que prescreveu São Bento há mais de 1500 anos. E usamos os livros que se usavam então, que se publicaram no início do século XX, nos anos 1920 ou assim, mas inclusive esses livros se baseiam na tradição de séculos anteriores. Assim podemos ler autores espirituais do século XIX que falam do ano litúrgico, da missa, do Ofício Divino, tal como o rezamos cada dia. E creio que a continuidade é uma fonte de fortaleza para nós, e a integração é também uma grande fonte de contemplação (…). É muito difícil separar o Ofício divino da Missa. É como se o Ofício fosse a coroa que rodeia a Missa, a perpetua ao longo do dia”.
Em 2006, a comunidade aceitou um convite do bispo Robert W. Finn para se trasladar à sua diocese de Kansas City-St. Joseph, em Missouri. E, desde então, a Providência de Deus tem feito que não cessem de ingressar irmãs em suas abadias.
Para mais informação, pode se visitar sua página web, www.benedictinesofmary.org .
