I
Tenhamos ou não conhecimentos profundos de teologia dogmática ou de exegese bíblica, penso que é um dever de todos e cada um dos cristãos fervorosos e formados (e com um assentado «sensus fidei»), tentar defender o que nossos antepassados (incluídos muitos Papas), creram firmemente: que «nosso Deus e Salvador Jesus Cristo» (2 Ped. 1,1), «nascido de mulher» (Gal. 4,4), quis associar a essa mulher, a Bem-Aventurada Virgem Maria, à sua obra de redenção. E que, sendo a sua obra salvadora perfeita e definitiva em si mesma com o sacrifício da cruz, foi sua vontade que ela ficasse vinculada de um modo especial e único a essa sublime imolação que mereceu a salvação de todos os homens.
Isso o temos sustentado sempre, pacificamente, e empregando sem complexos o termo corredentora. E agora é o momento de que cada um se pergunte a sério por que o crê, além de que seja doutrina católica certa. Para defender esta verdade, o fiel católico poderia ilustrar-se com bons argumentos de reputados teólogos, ou pronunciamentos papais do passado, e contrastá-los com as razões pelas quais a Nota romana, desaconselha o seu uso (quero supor que por um motivo mais prudencial que ecumênico). Muitos o têm feito assim. Mas eu prefiro seguir meu natural instinto cristão, mais que copiar os sobrados argumentos teológicos, litúrgicos e de tradição católica de outros para apoiar esta profunda verdade de fé. Conheço-os desde logo, e embora possa citar algum, considero mais oportuno que fale meu coração cristão (às vezes as razões que ele tem são mais poderosas que as da cabeça, como assinala Pascal) porque sinto verdadeiramente, neste assunto, que “o zelo da minha casa me devora”.
O próprio Código de Direito Canônico, afirma que “os fiéis católicos têm o direito, e às vezes até o dever, em razão de seu próprio conhecimento, competência e prestígio, de manifestar aos pastores sagrados sua opinião sobre aquilo que pertence ao bem da Igreja” (Cânon 212).
Em consequência, possua ou não conhecimentos ou competência (prestígio desde logo que não), sou católico e penso que o assunto é demasiado grave como para calar. Falarei, pois, daquilo de que minha experiência como cristão, meus estudos teológicos, minhas apaixonadas leituras da Bíblia e minhas orações me têm ensinado, “salvando sempre a integridade da fé e dos costumes, a reverência aos Pastores e tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas” (Cânon 212 in fine). Estimo que esta é uma dessas ocasiões em que cada católico, amparado no que recebeu dos que o precederam (2 Tes. 2,15-2 Tim. 2,2), não só deve dizer “não” a determinadas comunicações desafortunadas da autoridade competente, mas sobretudo argumentar e “dar razões de sua esperança” (1 Ped. 3,15).
Humildemente peço o auxílio do Espírito Santo, pois “embora sejamos fracos, vem em nossa ajuda” (Rm. 8,26), e me coloco sob a proteção de minha bendita mãe do Céu, que jamais negou e jamais negará aquilo que lhe peça um cristão em louvor de seu Filho. Porque não nos confundamos: reconhecer a corredeção mariana, não rebaixa a perfeita e definitiva obra salvífica de Cristo, mas todo o contrário. Que Cristo tenha associado a sua bendita mãe à sua redenção, honra mais ao Filho de Deus que à Bem-Aventurada Virgem Maria, pois revela assim de maneira sublime «a profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus» (Rm. 11,33).
Em consequência, exporerei duas convicções que tenho amadurecido em minha vida cristã:
a).- A mediação do cristão em geral.-
A primeira é que o termo “corredeção”, a meu juízo, certamente não é o adequado para explicar a cooperação de qualquer cristão em graça à salvação de outros (em virtude da impressionante comunhão de santos), embora sim reflita em certo modo essa ideia. Efetivamente, se no cristão em graça habita o Espírito Santo e solicita fervorosamente a Cristo que não permita a perdição de um irmão, é razoável pensar que, em muitos casos (se o Senhor quis acolher nossa súplica desde sua eterna Providência), podemos ajudar a salvar sua alma; isto é, lograr que esta acolha no último instante a misericórdia de Cristo, se se encontra a uma polegada do inferno. Por isso é tão necessário rezar pelos moribundos (e também pelos defuntos, para Deus não existe o tempo), tenhamos ou não a dúvida razoável de se se salvaram. Pode ser que não logremos sua salvação, mas em todos aqueles supostos em que aquele homem a alcance -se Jesus atende nossa oração, porque tivesse previsto nos fazer caso desde antes dos tempos-, poderíamos afirmar que temos sido, em certo modo, «corredentores». Em qualquer caso, não me parece correta esta palavra aqui, e deveríamos usar melhor os termos bíblicos de oração de mediação, e de eficácia da oração do justo. Os cristãos nascemos em pecado e fomos redimidos. E sabemos «por tal nuvem de testemunhas» (Hb. 12,1), que o título corredentor só é exclusivo de Maria, quem ao contrário de nós nunca teve pecado porque foi redimida preventivamente.» «Enquanto a Beatíssima Virgem alcança já a perfeição, os fiéis ainda se esforçam por crescer em santidade» (Lumen Gentium 65).
b).- A corredeção de Maria por vontade de seu Filho.-
A segunda convicção é essa que acabamos de anotar: Maria é a única «corredentora» (só Cristo é o Redentor). No caso da Bem-Aventurada Virgem Maria, sim podemos e devemos empregar o termo. Aqui o termo adquire uma dimensão muito mais real e intensiva porque, sendo ela poderosíssima mediadora (como os cristãos em estado de Graça) à qual podemos acorrer além por sua condição maternal, sua intercessão é -de fato, isto é, pela experiência dos cristãos de todos os séculos- infalível (no sentido de sempre eficaz e segura). Repito para que ninguém se escandalize, é uma verdade de fato; o que significa que, embora não seja uma Verdade de fé (por enquanto), é Verdade com maiúscula. E não creio que nenhum cristão -incluído Víctor Fernández- se atreva a negá-la como tal, pois em tal caso deveria por exemplo, anatematizar como herético o Acordaos de São Bernardo e o sentido da fé do povo cristão. Mas se é infalível (em sentido fático) como cremos os cristãos, devemos concluir que Maria não só media, não só intercede mas que, ao fazê-lo, alcança a redenção do intercedido (porque seu Filho a aceita sempre, dado que quis associá-la ao seu sacrifício). A mediação de qualquer cristão em graça é poderosa mas pode falhar. A dela, nunca. Por isso é corredentora.
A seguir tentarei desenvolver com mais detalhe -e com a autoridade da Palavra de Deus- ambas as mediações.
II
Lo primero é saber com precisão aquilo de que falamos com a palavra “corredeção”, e há um princípio essencial que devemos ter sempre presente, e nunca nos desviar do mesmo:
Para a fé cristã, só há um redentor, não dois redentores, e esse redentor é Cristo, Deus e homem verdadeiro, que com seu sacrifício na cruz pagou superabundantemente a dívida do pecado humano. Não precisa de nada nem de ninguém mais. A Escritura é rotunda:
«Em nenhum outro se encontra a salvação, pois não se nos deu sob o Céu outro nome que o de Jesus para nos salvar» (At 4,12). E
«Porque há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo homem» (1 Tim. 2,5).
Jesus nos salvou “de uma vez para sempre oferecendo-se a si mesmo” (Hb. 7,27), pelo que já não existem nem existirão novas vítimas nem novos sacrifícios redentores. Consumado o único sacrifício com eficácia definitivamente expiatória, nosso dever como cristãos não é outro que viver em ação de graças e obedecer à vontade da Vítima, que quis que fizéssemos memória de Ele (1 Cor. 11,24) (em sentido bíblico, não um recuerdo mas um torná-lo presente), para nos unirmos “como hóstias vivas, santas e agradáveis a Ele” (Rm. 12,1). Viver eucaristicamente em suma. Por isso atualiza-se seu único e definitivo sacrifício pelas mãos purificadas do sacerdote, no memorial através do qual nos são aplicados seus salutares benefícios. E o seguiremos fazendo -como nos o ordenou durante a última ceia (Lc. 22,19)- até o final dos tempos.
Precisamente nessa oração pública –o Santo Sacrifício da Missa-, cada cristão da Igreja militante se une em oração com a Igreja Triunfante do Céu, mas «in primis gloriosae semper virginis Marie genitrice Dei (Cânon Romano) -em primeiro lugar, com ela-, para impetrar não só sua própria salvação. Também tendo a esperança de poder obtê-la para todos aqueles pelos quais oramos, na certeza de fé do “imenso valor ante Deus da intensa oração do justo” (Tg. 5,16).
Essa é uma verdade luminosa, recordada pelas Sagradas Escrituras como também pelos papas: que Deus outorga uma poderosa eficácia à oração fervorosa do homem que está em sua Graça –sobre tudo unido ao Sacerdote no Sacrifício do Altar-, porque lhe confere o poder de contribuir para salvar (para redimir) uma alma em perigo de condenação. Por exemplo, Pio XII, em sua encíclica “Mystici Corporis Christi” de 1943 (numeral 44):
“Misterium sane tremendum (…), quod hominum multorum salus a precibus et voluntariis expiationibus membrorum Corporis mystici Iesu Christi”
“Mistério verdadeiramente impressionante que as orações e voluntários sacrifícios dos membros do Corpo Místico tenham eficácia salvadora para muitos”
A pesar de tudo, reitero que considero inadequado qualificar essa ação mediadora ou intercessora do cristão em estado de graça como corredeção, aun sabendo que nele habita o Espírito Santo e por tanto está verdadeiramente divinizado, já aqui na terra. Em rigor, como assinalei antes, esse termo devemos aplicá-lo aos mediadores mais importantes por infalíveis, o mediador original (ou como dizem os teólogos clássicos por mérito de condigno, Cristo) e o mediador subordinado por excelência, mediador por mérito de congruo (a Bem-Aventurada Virgem Maria).
Mas deixemos as distinções escolásticas anteriores e centremo-nos na convicção de que o Senhor escuta nossas orações. E embora é verdade que às vezes -demasiadas- “não sabeis o que pedis” (Mt. 20,22) (o que nunca sucede com a Virgem Maria, que pede e obtém, por exemplo em Caná da Galileia), a insistência e a perseverança do justo, tem sua recompensa, pois Deus “Não fará justiça aos seus eleitos que clamam a Ele dia e noite?” (Lc. 18,7).
E recordemos além disso o que, no Evangelho de João, nos assegura o Senhor:
“Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim as obras que eu faço também as fará ele, e maiores que estas fará, porque eu vou ao Pai”. E qualquer coisa que pedirdes em meu nome isso farei, para que seja glorificado o Pai no Filho (Jo. 14,12).
Nunca menosprezemos, portanto, nossa intermediação e sejamos conscientes da imensa dignidade -e poder espiritual- que possuímos como verdadeiros filhos de Deus. E quanto à dificuldade dos textos bíblicos citados, especialmente 1 Tim. 2,5, como explica o teólogo Cándido Pozo após uma cuidadosa exegese, é claro que o redentor, Cristo, é «um», o que quer dizer que é «um só (isto é, a mesma pessoa) e é mediador respecto a todos«. Isso implica que «a palavra «um» não se opõe à possível existência de mediadores subordinados, mas a que se limite a eficácia mediadora de Cristo Jesus, pois Ele abarca a totalidade dos homens em sua ação. Desta maneira, o texto só afirma que há um mediador único, isto é, o mesmo e ineludível para todos, mas não trata de se essa mediação é compatível ou não com a existência de mediadores subordinados» (Cándido Pozo, Maria, Nova Eva, pág. 364).
III
Chegamos ao momento de explicar por que creio com certeza que Maria é legitimamente «corredentora». E por que considero que, sendo um erro contra a fé católica colocar sua mediação ao mesmo nível da do único redentor, Cristo Nosso Senhor (erro no qual, por certo, nunca vi cair a nenhum católico cabal), é um despropósito tentar desterrar por razões espúrias (ecumênicas) este legítimo título mariano, avalado pela tradição católica. Portanto, nem «falsa exageração», nem «excessiva estreiteza de espírito» (Lumen Gentium, 67). Por excesso ou por defeito não podemos nos equivocar e, por isso, convém assegurar-se com a Verdade das Sagradas Escrituras, tal como as tem entendido sempre a Tradição Católica, único caminho pelo qual estamos isentos de nos equivocarmos.
E um atento e constante leitor das Sagradas Escrituras percebe algo crucial: tanto Jesus Cristo como Maria (homem-Deus o primeiro e criatura criada a segunda), são os únicos personagens bíblicos que aparecem e de maneira simultânea: ao princípio da história da salvação, no momento cume dessa redenção, e finalmente (através de figuras simbólicas) em sua consumação. Isto é, sempre estão vinculados à salvação do homem caído.
Ambos os personagens são o nervo que atravessa toda a Bíblia, desde o Gênesis ao Apocalipse, para transmitir a luz da salvação. Eles, e nenhum mais. Não faz falta destacar um ato puntual de associação, quando a Bíblia os tem associado em cada hito salvífico determinante. Mãe e Filho, surgem no início, no meio e no termo da história sagrada, e aparecem comprometidos, além de seu vínculo materno-filial, por uma absoluta inimizade com uma sinistra figura que arruinou a vida dos homens e desejará destruir a obra de redenção, o demônio. Isto é, como veremos a seguir, toda a história da salvação está relacionada com os dois (mesmo quando Maria não existia), o que é um forte indício de que quis Cristo claramente associar a sua bendita mãe em sua obra redentora. Examinamos esses três momentos:
(1).- Ao princípio do Livro Sagrado.-
Bereshit, No princípio…Admiramos o Logos que cria a luz, mas também, muito em breve, se mencionará a mulher inimiga mortal da serpente –do pecado-. Efetivamente, podemos encontrar a Nosso Senhor Jesus Cristo na primeira Palavra que se ouve na Bíblia, uma ordem performativa em meio do caos: Haja luz. E esta não se identificava tanto com uma realidade física como com a Sabedoria (Sab. 7,26) e com a Vida (Jo. 1,4), as mesmas aspirações que levaram à perdição a nossos primeiros pais, pois nesses dois concretos bens os tentou o demônio: «conhecereis e não morrereis» (Gên. 3,4-5). Gravíssima mentira. Sem Cristo não há vida (Jo. 13,6), não há sabedoria (1 Cor. 1,24) e não há salvação (At 4,12).
Por isso Cristo é a figura central de toda a Bíblia, desde o princípio até o final. Cria, dá a vida, e nos redime.
Mas o homem cai. E então -primeira esperança da humanidade- se anuncia uma mulher à qual Deus lhe outorgou o dom de ter uma perpétua inimizade com a serpente, e de sua semente surgirá quem pisará a cabeça do réptil (isto é, o matará), embora este lhe fará dano e ferirá seu calcanhar (Gên. 3,15).
É o Protoevangelho, que não só menciona o triunfo de Cristo ao esmagar a cabeça da serpente após um imenso sacrifício –kenosis e uma morte de cruz (Fil. 2, 7-8), simbolizado na ferida do calcanhar-, mas também, misteriosamente, à mulher da qual surgirá a semente que a destruirá. Utilizo esse advérbio porque se o escritor inspirado queria aludir à ação redentora do fruto dessa mulher, de Cristo, bastava ter dito: «a semente de uma mulher te pisará a cabeça, enquanto tu lhe ferirás o calcanhar», dando por suposta essa inimizade. Mas aponta na realidade muito mais, expressa uma radical inimizade serpente-mulher, de modo que ela é citada na Escritura mesmo antes que a semente redentora. A inimizade de Gên. 3,15 não se trata, portanto, de uma antipatia ceñida a um determinado momento, mas mais bem a uma animadversão absoluta e permanente, desde o princípio até o final da aventura humana. Simplesmente porque essa incompatibilidade é algo que lhe confere Deus, o Santo dos Santos; não é algo que brote/brotará da bondade natural dessa mulher: Inimizade porei, com o que aqui falamos de Graça, de Dom sobrenatural, que a reflexão cristã desde muito antigo interpretou como a exoneração de toda mancha de pecado desde o primeiro instante da concepção. Maria participa, como criatura, da santidade ontológica de Deus, e participa desde que só era a mais bela ideia do Criador desde toda a eternidade. Mas participa para uma finalidade muito específica, que não é outra que nossa redenção. A ausência de pecado original de Maria, com o que implica de problemática exceção à regra universal (Rm. 5,12 e ss.), não tem sentido se não é em ordem à nossa salvação. Ela foi redimida preventivamente, porque Cristo queria associá-la à redenção do gênero humano.
É importante, por último, destacar que na tradução literal do texto Hebraico Masorético, da Septuaginta e da Vulgata de São Jerônimo, a «semente» da mulher é o ator que esmaga a cabeça do réptil, enquanto que nas primeiras cópias da Vulgata -provavelmente por um erro do copista- é essa mesma mulher a que realiza a ação. Esse equívoco providencial, que tanto influíu historicamente na piedade, na iconografia e na pintura católicas, confirma a fortíssima vinculação entre ambos. Mais uma vez Deus escreve reto com linhas tortas.
Em qualquer caso, se queremos aprofundar nessa cooperação devemos nos trasladar ao momento decisivo da mãe, do Filho e da história da humanidade: o santo sacrifício do Calvário.
(2).- Na fase cenital da história da salvação: a paixão e morte do Filho de Deus.-
Cantam os Salmos: «Mas muito lhe custa a YWHW a morte de seus santos» (Sal. 115,15). O calcanhar ferido de Jesus crucificado cumpre a dramática profecia do Gênesis. Junto a Ele (como assinala o Evangelho de João) sua bendita mãe, a bem-aventurada Virgem Maria, a mulher inimiga da serpente. Cristo está crucificado e ela está de pé diante de seu Filho no Monte Calvário. Em certo modo também crucificada: Traspassada.
Porque a essa mulher, de um modo obscuro, lhe tinha sido anunciado o drama sacerdotal do Calvário, por um profeta dos velhos tempos -o ancião Simeão-. Este lhe referiu uma enigmática -e terrível- profecia justo no instante em que acaba de lhe anunciar que seu Filho seria «bandeira discutida» (Lc. 2,34). Interpretar esta dramática profecia, «a espada que atravessará tua alma», como uma mera metáfora da dor de uma mãe que vê morrer cruelmente assassinado a seu Filho, é ter escassa ideia do sentido da profecia bíblica. Corrijo, é não ter nem a menor ideia.
Como têm explicado os melhores teólogos, a profecia judaica não busca tanto antecipar fatos futuros, como anunciar ou explicar um evento de salvação, transmitir a Palavra de Deus ao povo, interpretar a história à luz da fé de Israel e em último termo, ser um sinal de esperança em momentos históricos difíceis. E que Maria fosse traspassada espiritualmente, ao mesmo tempo que seu Filho o seja -além de espiritual, materialmente- é algo que exclusivamente se diz deles; de ninguém mais que estivesse no Calvário na hora de nossa redenção; nem de Maria Madalena ou do discípulo amado. Eles sofrem por Jesus ao qual amam apaixonadamente; Maria sofre com Jesus ao qual gerou em seu ventre. Maria e Jesus crucificado compartilham o mesmo: um sacrifício pela redenção do homem. O de Maria, derivado e subordinado ao de Jesus. Ela morre espiritualmente com seu Filho, para passar a ser a mãe de todos os pecadores, a mãe de cada um de nós. De mãe de Deus a mãe dos pecadores, a kenosis de Maria, solidária com a de seu Filho. Maria, refúgio de pecadores.
No Antigo Testamento, o profeta Isaías previu os padecimentos do Servo de YWHW, todos ligados a um concreto fim de sanação, de salvação. O Servo:
«Certamente levou nossas enfermidades e sofreu nossas dores; e nós o tivemos por flagelado, por ferido de Deus e abatido. Mas ele foi traspassado por nossos pecados, moído por nossas culpas; o castigo, preço da paz foi sobre ele, e por suas feridas fomos curados» (Is. 53,4-5).
Que Simeão tenha augurado à Bem-Aventurada Virgem Maria esse mesmo e dramático evento de seu traspasso no monte calvário (e significativamente após o rito da circuncisão de seu Filho, seu primeiro sangue derramado), é a constatação de que Deus quis vincular os sofrimentos de ambos para a mesma finalidade salvífica: Paixão de Cristo na cruz, Com-paixão de Maria ao pé da cruz, ambos traspassados. A Paixão de Nosso Senhor foi e é o sacrifício perfeito, mas por sua superabundante caridade -pela «largura, longitude, altura e profundidade de seu amor» (Ef. 3,18)-, era muito conveniente que nos regalasse a Maria, a filha de Sião, a fim de que com sua Com-paixão, fosse corredentora, cooperando assim, com sua poderosa intercessão (tão poderosa que é infalível), a redimir o homem pecador. E como assinalei no princípio e repetirei uma e outra vez, a corredeção mariana não quita nem adiciona nada à redenção de Cristo, mais bem a ilumina, manifestando sua eficácia. ¡A Ele a única glória por querê-lo e por fazê-lo! E como diria Duns Scoto: «quis fazê-lo, pôde fazê-lo e o fez».
Finalmente, a circunstância de que o mesmo Cristo tenha entregado a sua mãe ao discípulo amado (Jo. 19,26-27), tampouco pode se interpretar de maneira plana como uma preocupação doméstica do Senhor ante a futura solidão de Maria. Ela nos é dada como mãe de todos e de cada um dos cristãos, porque o Senhor sabe que a necessitamos como pecadores que somos. A comovedora frase «e o discípulo a acolheu em sua casa», só pode se entender de uma maneira: quem acolhe a Maria em seu lar, em sua vida e em seu coração, e escuta sua dulcíssima voz que nos pede: «Fazei o que Ele vos disser» (Jo. 2,5), não deve temer por sua salvação.
Mas há algo mais relevante pouco depois desse episódio. Maria ficará constituída como mãe da Igreja. A prova é inequívoca: a seguinte ocasião em que a encontramos nas Sagradas Escrituras é no cenáculo junto aos discípulos -a primeira Comunidade cristã-, «perseverando unânimes na oração» (At 1,14), à espera da poderosa efusão do Espírito Santo em Pentecostes. Ela, desde a eternidade, foi proclamada Mãe do Verbo Encarnado; desde o calvário, Mãe dos pecadores, e desde a ressurreição de Cristo, Mãe da Igreja. E como tal desempenhará sua última missão intercessora e mediadora -corredentora- junto com seu Filho nesta admirável história de nosso resgate até que o Senhor volte e recapitele tudo para glória do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
(3).- Ao fechamento das Escrituras e de toda a história humana, onde se culmina o destino celestial dos redimidos.
Após a morte terrena de ambos, seguem operando nossa salvação desde o Céu. Cristo triunfou na cruz, «pois tirou de en meio o ato de acusação por nossos pecados, cravando-o consigo na cruz» (Col. 2,14). E após sua sepultura, foi «exaltado à destra de Deus» (At 2,33), e «o Céu tem que retê-lo até o tempo da restauração universal que anunciou Deus desde antigo por meio dos profetas» (At 3,21).
Quanto à bem-aventurada Virgem Maria «cumprido o curso de sua vida terrena, foi assumida em corpo e alma à glória celeste» (Bula «Munificentisimus Deus», Pio XII, 1950).
Desde o Céu e durante toda a história da Igreja, Cristo tem oferecido e segue oferecendo ao Pai -através da Santa Missa celebrada em cada lugar da terra- seu mesmo e único sacrifício para a redenção dos pecados e para a reconciliação do homem caído com Deus. E junto a Ele, sua mãe -como fez a rainha Ester com o Rei Assuero (Est. 8,4-6)- intercede pelos pecadores e consegue obter para nós quanto de bom deseja, como poderosíssima mediadora que é. Até que seu Filho volte.
Porque voltará. E o fará como monarca de um Reino que não terá fim e» submeterá tudo a seus pés», a todos seus inimigos, incluída a morte, que será a última derrotada (1 Cor. 15, 26-27, Ap. 21,4). Um tempo e um Reino que anelamos, mas que ainda não podemos compreender com clareza (pois «vemos obscuramente» (1 Cor. 13,12), embora tenhamos a certeza de fé de que se implantará. E inclusive certos indícios de nossa época, a meu humilde juízo, apontam a que esses tempo últimos ou finais não ficam muito longe.
E como não podia ser menos, nesse último trecho existencial que desembocará no tempo glorioso onde haverá «novos céus e terra nova onde habite a justiça» (2 Ped. 3,13), mãe e Filho seguirão unidos como desde o princípio têm estado, na missão de derrotar à serpente/diabo -o pecado-. Mas já não são só figuras da história, mas pessoas íntegramente glorificadas pelo que sua unitária intervenção na etapa conclusiva dos anais da humanidade deve se expressar profeticamente através do símbolo. E assim o faz magistralmente João no livro que fecha com um broche de ouro as Sagradas Escrituras.
Efetivamente, o Cristo glorioso do Apocalipse aparece mediante três alegorias, que significam seu triplo caráter profético, real e sacerdotal: um Filho do Homem, que anuncia o destino das sete Igrejas (sete épocas da cristandade (Ap. 1,13 e ss.); o Cavaleiro régio sobre o Cavalo Branco, o qual derrotará ao anticristo e ao falso profeta, e acorrentará ao diabo (Ap. 19, 11-21) e, finalmente, um Cordeiro Degolado mas rebosante de sabedoria e poder, cujo sacrifício redimiu aos homens (Ap. 5, 6-14). Uma impressionante paradoxo, pois parece vencido e, no entanto é o único digno de receber os títulos exclusivos de Deus: «Potência, Força, Glória, Sabedoria e Bênção» , e receber Adoração (Ap. 5, 12-14).
E a mesma paradoxo -fortaleza/fraqueza- encontramos a poderosa imagem simbólica da bela mulher vestida de sol, que representa, ao mesmo tempo, à Bem-Aventurada Virgem Maria e ao Israel de Deus ou a Igreja cristã (Ap. 12,1).
Seu triunfo se acredita ao cingir sua coroa de doze estrelas (a realeza sobre o Velho e o Novo Israel, isto é, sobre todos os santos), e seu pé sobre a lua, pisando o paradigma por excelência do mutável e efêmero (o mundo, «a terra primeira e o mar que desaparecerão» -Ap. 21,1-»). Sua fraqueza, no entanto, é seu doloroso estado de parto e a presença ameaçante de um sinistro dragão vermelho que a obriga a fugir ao deserto (Ap. 12,2-3), mas que, em todo caso, não prevalecerá contra ela (Ap. 12,6-7). São os tempos dramáticos da última batalha contra o mal, de uma Igreja voltada às catacumbas e do efêmero reinado de três anos e meio do Anticristo, antes da vinda do Senhor.
A Igreja sofrerá e muito. Mas paradoxalmente o cristão só é forte na fraqueza (2 Cor. 12,10). De a mão de Maria deverá ascender ao mesmo Calvário, para se configurar com ela na fé, na obediência e na fortaleza de ânimo ante o Filho imolado. As estações da Quinta-Feira e da Sexta-Feira Santa de Cristo terão que ser percorridas por seu «corpo místico», por sua Igreja, nos tempos escatológicos, mas sempre na fervorosa espera do Domingo de Ressurreição. E quando a Igreja -o resto fiel que fique dela-, estiver plenamente identificada com a fé, a obediência e a fortaleza espiritual de Maria, vislumbrará no horizonte ao cavaleiro régio que a salvará de seus inimigos. Só assim «se apresentará a Ele (a Cristo) esplendorosa, sem ter mancha nem ruga, mas santa e imaculada» (Ef. 5,27).
Derrotados para sempre todos os inimigos de Cristo e do homem -o último será a morte (1 Cor. 15,26)-, o Apocalipse empregará a metáfora bíblica por excelência para descrever o tempo de felicidade imperecedoura: a dicha de umas núpcias e o banquete dos convidados (isto é, a salvação dos eleitos). Recordemos ao profeta Oseias:
«E te desposarei comigo para sempre; sim, te desposarei comigo em justiça e direito, em piedade e clemência» (Os. 2,21).
O que foi prefigurado nas bodas de Caná -a aliança de amor de Cristo com sua Igreja-, instaura-se já para sempre, e ficará o melhor vinho, a graça superabundante de Cristo na festa do Céu (Jo. 2,10). E então contemplaremos a Igreja como Jerusalém celeste, como noiva enfeitada que desce para receber a seu esposo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e a cujos eternos festejos de bodas, a sua celebração celestial, estamos convidados todos os crentes. «Águas caudalosas não poderão apagar o amor, nem os rios extingui-lo» (Ct.8,7).
Em definitivo, de tudo o visto, quatro são os hitos fundamentais da colaboração corredentora de Maria em nossa salvação: (1).- a Mulher do Gênesis como profecia; (2).- a Maternidade divina de Maria como fato histórico; (3).- a identificação plena da Igreja dos últimos tempos com Maria no Calvário, como premissa da gloriosa vinda de Cristo, e (4).- os esponsais da Igreja e do Cordeiro como metáfora da futura e eterna unidade indissolúvel de Maria e Jesus com seu povo. Todos eles apontam inequivocamente para a mesma conclusão soteriológica: Jesucristo e Maria -ela por decisão amorosa de seu Filho-, realizaram juntos nossa salvação.
Para concluir, quão irônico é o fato de que muitos pais do Concílio Vaticano II por bobagens ecumênicas rejeitaram o esquema independente sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria, para ubicar seu tratado como um mero apêndice da Constituição sobre a Igreja, Lumen Gentium, cap.VIII. A apesar de tudo, a misericórdia de Deus -não isenta às vezes de fina ironia- concede o dom profético aos «sumos sacerdotes», por descrentes que sejam (veja Caifás, Jo. 11,51). E, sem o saber, estes anunciaram um decisivo sinal escatológico: abriram provavelmente a última etapa da história salutis -como captamos no Apocalipse-, na qual, como vimos, nossa mãe e corredentora se identifica plenamente com a Igreja cristã, que sofre mas que triunfará. É a Igreja de Cristo que se apresentará enfeitada a suas eternas núpcias, tão hermosa como uma noiva enjoyada, e tão resplandecente como a Jerusalém celeste que desce do Céu para suas fastuosas bodas com o Cordeiro de Deus (Ap. 21,2). Oxalá todos nós sejamos convocados e nos vejamos felizes ali. Oxalá.
¡Que o Senhor nos conte no número de seus eleitos!
¡E que sua bendita e doce mãe, corredentora com Ele, e que também é mãe nossa, assegure nossa eleição! A ti te imploramos os cristãos; a ti te imploro, mãe:
«pois jamais se ouviu dizer que todo aquele que tem acudido a vós, implorando vosso auxílio e pedindo vosso socorro tenha sido abandonado de vós. Com essa esperança a vós acudo, ó virgem das virgens, e embora gemendo pelo peso de meus pecados, atrevo-me a comparecer ante vossa presença soberana. Não deseches minhas súplicas, antes bem escuta-as e atende-as benignamente, Amém».
A.M.D.G
Ajude a Infovaticana a continuar informando
