TRIBUNA: A omissão significativa de um parágrafo da Lumen Gentium no documento contra a co-redenção de Maria

Por: Luis López Valpuesta

TRIBUNA: A omissão significativa de um parágrafo da Lumen Gentium no documento contra a co-redenção de Maria
I
Após ler detenidamente o documento emitido pelo Dicasterio para a doutrina da fé, assinado pelo prefeito Víctor Fernández e pelo papa Leão XIV, parece clara a intenção por parte de Roma de extirpar na medida do possível - e não esclarecer ou iluminar - o nome de corredentora, aplicado à Bem-Aventurada Virgem Maria. Título entrañable que o «sensus fidei» do povo fiel sustenta há séculos. Eu mesmo como católico pedi sua proclamação como dogma em meu artigo Éfeso 431 d.C,, amparando-me em minha intuição cristã e na doutrina constante dos Papas até João Paulo II, que o sustentou inequivocamente, pelo menos até o ano 1.996 (nota 36). Este documento reconhece que a «corredenção» é um título mariano utilizado pelos Papas anteriores, embora use uma frase que, talvez, pareça um tanto displicente:
«Alguns  Pontífices usaram este título sem se deterem demais a explicá-lo» (18).
Em definitivo, a intenção evidente é remover do meio uma verdade assumida pelo fiel povo cristão, e isso fica provado quando nesse documento se lê, por exemplo (sublinhados meus):
«Tendo em conta a necessidade de explicar o papel subordinado de Maria a Cristo na obra da Redenção, é sempre inoportuno o uso do título de Corredentora para  definir a cooperação de Maria» (22).
Sempre inoportuno, diz. Não vou negar que os argumentos teológicos para essa pretendida defenestração são sólidos - não pode ser menos, tratando-se de uma nota doutrinal do Dicastério que vela pela pureza da fé-. Citam-se, como é lógico, At 4,12 («só nos salvamos pelo nome de Jesus»), ou 1 Tm 2,4 («Cristo homem é o único mediador»). E justifica-se  essa vontade de eliminá-lo com a seguinte desculpa:
«Quando uma expressão requer muitas e constantes explicações para evitar que se desvie de um significado correto, não presta um serviço à fé do povo de Deus e se torna inconveniente»  (22).
É claro, não pode faltar mencionar o peculiar magistério do Papa Francisco (o mesmo que nomeou o atual Prefeito da doutrina da fé):
«Maria jamais quis para si tomar algo de seu Filho. Jamais se apresentou como corredentora» (21).
É que Francisco pensava que os cristãos defenderam alguma vez essas duas barbaridades, que Maria ambicionasse algo? Maria é o exemplo mais radical de humildade e obediência de toda a história sagrada (exceção feita de seu Filho), e todos os maravilhosos dons com os quais a embelezou o Espírito Santo - incluída sua cooperação e colaboração à nossa salvação (ou corredenção) - são expressão da Graça divina, que desceu sobre ela desde o primeiro instante de sua concepção. Ela, como qualquer criatura, nada tem sem que o tenha recebido antes de Deus, absolutamente nada. Se ela é corredentora não é porque se apresentasse como tal, não porque aspirasse a ello, mas porque o Senhor quis que o fosse. Ela não cravou uma espada em sua alma; a ela a cravaram (Lc 2,35).
O mais triste é que se perdeu uma ocasião idônea para esclarecer e precisar teologicamente o alcance (e os limites) deste título mariano, tão arraigado no povo como na doutrina dos Papas, em vez de pretender dar-lhe ropaje teológico às desafortunadas e falazes palavras do Papa Francisco. Porque é um assunto de tal calibre soteriológico, que merece ser aprofundado. Assim o expressa lucidamente o teólogo Aurelio Fernández em seu tratado de «Teologia Dogmática» (pág. 442):
«O que parece urgente é explicar com rigor o conteúdo exato do termo «corredentora», pois aqueles que se resistem a admiti-lo referem com razão que a fórmula co-redentora não pode significar igualar a Cristo Redentor e a Maria Redentora, pois ela também foi redimida; a diferença pois entre a ação redentora de Cristo e a associação da Virgem à sua obra não é de «grau» mas «essencial». Nem mesmo pode significar uma simples «coordenação» de tarefas, mas deve garantir a «subordinação de funções». 
 
«Explicar», não «eliminar». Na história eclesiástica jamais teria existido desenvolvimento teológico algum nem em Cristologia, nem em Mariologia, nem em Eclesiologia, se se tivessem refrenado os teólogos e o Magistério pelos «inconvenientes» ou «inoportunos» perigos dos conceitos usados para explicar verdades de fé. Agora que celebramos os 1.700 anos de Niceia, pensemos no termo não bíblico «homousios», a enormidade de problemas que gerou; recordemos o título dado à nossa Mãe bem-aventurada em Éfeso (431) de «Theotokos» (nenhum católico, nem os mais loucos, o interpretam como a precedência ontológica de Maria sobre a Santíssima Trindade, embora os protestantes mais fanáticos nos o lancem em cara pela internet). Reflitamos sobre a Igreja, definida como «Sacramento universal de salvação», que não quer dizer que exista um oitavo sacramento como poderia interpretar algum néscio. Se há algo que caracteriza a fé católica, é a exigência de usar, além das Sagradas Escrituras, a Tradição e o Magistério, a força da razão. Apesar, é claro, dos riscos que ello conlleva, dada a dificuldade da linguagem humana para abordar e precisar as questões mistagógicas.
E por descontado poderíamos evocar aqueles dogmas proclamados quando a Igreja não tinha complexos ecumênicos (Imaculada Conceição, Assunção, Infalibilidade papal…). Não me cabe dúvida de que, de não terem sido definidos solenemente essas verdades de fé, os autores do documento que criticamos nos entediariam com uma farragosa exposição acerca do escasso apoio escriturístico dos mesmos e suas graves repercussões para a unidade com hereges e cismáticos. Mas esses Papas valentes de outrora não se amedrontaram pelas dificuldades teológicas (no primeiro caso), escriturísticas (no segundo) ou históricas (no terceiro). E lhes importava um ardite enfadar os heresiarcas.
 
Em definitivo, pergunto ingenuamente: por que não se tentou «fazer Teologia com maiúsculas«? Trabalhar com inteligência, com fé e com o fogo da caridade sobre um conceito mariano tão emotivo, que leva mais de cinco séculos sendo empregado habitualmente pelos católicos. Assim o reconhece o documento no numeral 17, se bem que a primeira luz já a perceberam Padres do século II como São Justino e São Ireneu ao descrever Maria como a Nova Eva, por cuja obediência nos veio a salvação. Por que se quis então afundar a esperança de tantos cristãos que esperam o reconhecimento deste quinto dogma mariano?  Por quê?
O documento parece responder a essa pergunta citando - como não - ao Concílio Vaticano II, concretamente ao Capítulo VIII da Lumen Gentium, pois este Concílio «evitou utilizar o título de corredentora por razões dogmáticas, pastorais e ecumênicas» (18). Certo, mas com um importante matiz que veremos a seguir. Evitou o título, mas reconheceu esta irrenunciável verdade em um luminoso parágrafo que, significativamente, é omitido no documento do Dicastério e em suas notas. O veremos a seguir.
II
 
Está suficientemente estudado por teólogos e historiadores o fato de que durante as sessões do Concílio Vaticano II (1962-1965) se abandonaram os esquemas preliminares confeccionados desde que João XXIII anunciou a magna reunião em 1959, incluído um específico sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria. A proposta do Cardeal alemão Frings e 66 bispos centroeuropeus - não é brincadeira o número - se preferiu, após uma votação muito renhida (1.114 votos contra 1.074), unir os esquemas sobre a Igreja e sobre a Virgem (o que significou jogar no lixo o esquema específico sobre Maria). E por isso surgiu o capítulo oitavo, conclusivo da Lumen Gentium, colocando a Virgem Maria como um fecho que fecha o tratado geral sobre a Igreja. E embora se tentou que o capítulo se denominasse «Maria, mãe da Igreja»,  finalmente se intitulou «Maria, mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja».
 
Esses fatos objetivos, dada a aberta intenção ecumênica do Concílio, pudessem fazer pensar que muitos pais conciliares (por exemplo os da bacia contaminada do Reno) não desejavam uma excessiva presença do tema mariano no Concílio. Em qualquer caso, há que reconhecer Deus escreve reto com linhas tortas e que esse vínculo que estabelece a Lumen Gentium entre a Igreja e a Bem-Aventurada Virgem Maria (já existente na tradição, por certo) supôs um importante logro teológico, como expressou nosso recordado Bento XVI, que escreveu:
«Penso que esse redescobrimento da transicionalidade de Maria e Igreja, da personalidade da Igreja em Maria, e da universalidade do mariano na Igreja, é um dos redescobrimentos mais importantes da teologia do século XX» 

E com a lucidez que caracterizou o grande teólogo bávaro, anotou:

«A Igreja é pessoa. Ela é uma mulher. É mãe. É viva. A compreensão mariana da Igreja  representa o mais decidido rechaço de um conceito organizativo e burocrático (…) A Igreja foi gerada quando na alma de Maria despertou o Fiat. Esta é a mais profunda vontade do Concílio: que a Igreja desperte em nossas almas. Maria nos mostra o caminho».
E embora também é público e notório que a mariologia sofreu um eclipse nos anos posteriores ao Concílio, o certo é que na Lumen Gentium, pese a não utilizar a palavra «co-redenção» (por motivos indisimuladamente ecumênicos), sim alude clarissimamente a essa função. Esta Constituição Dogmática, ao referir-se à ação da Bem-Aventurada Virgem Maria, inclui unas luminosas palavras que, no entanto, não são citadas em Mater Populi Fidelis. E é fácil deduzir a razão pela qual não se introduziu neste documento (nem em suas abundantes notas marginais) essa luminosa citação da Lumen Gentium: desmontaria toda a tramóia de sua brilhante argumentação.
Transcrevo-a com profunda emoção. E com a certeza de que foram verdadeiramente inspiradas pelo Espírito Santo para manter aberta a janela do quinto dogma mariano, que será proclamado com uma alegria imensa do povo cristão no momento em que o queira Nosso Senhor. E não esqueçamos que esta breve declaração dogmática da Lumen Gentium está, quanto a valor doutrinal, muito acima de todos os numerais do documento do Dicastério, uma nota que passará sem pena nem glória e da qual espero que em breve seja esquecida como outros muitos documentos romanos do passado.
Incluo também o original latino em negrita pois é, se cabe, mais emotivo (e forte). Diz assim:
«A Santíssima Virgem (…) concebendo a Cristo, gerando-o, alimentando-o, apresentando-o ao Pai no Templo, padecendo com seu filho quando morria na cruz, (filioque suo in cruce moriendi competiens) cooperou de forma inteiramente ímpar à obra do salvador  (operi Salvatoris singulari prorsus modo cooperata est) com a obediência, a fé, a esperança e a ardente caridade, com o fim de restaurar a vida sobrenatural das almas (ad vitam animarum supernaturalem restaurandam) (61)«.
Em conclusão, tranquilidade. Nada se fechou. E por críticos que possamos ser com certas expressões ambíguas dos em geral magníficos documentos do Concílio Vaticano II, aqui não me cabe dúvida de que atuou o Espírito Santo de uma maneira especial e clarificadora. E o fez para que tenhamos presente que, efetivamente, e em primeiro lugar, «pelo sangue de Cristo, temos a redenção» (Ef 1,3).  Mas igualmente para que nunca esqueçamos que foi vontade do Divino Filho que sua bendita mãe estivesse junto à sua cruz, para associá-la especialmente à sua salvação.
O «como» ou «de que modo» atua essa cooperação, fica como uma questão pendente para os sábios teólogos e que sejam, ao mesmo tempo, homens de ardente fé. Não, desde logo, para os que redataram esse prescindível documento.

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