«Morte no cavalo pálido» de Benjamin West.
Santidade, peço que me desculpe pela minha insistente e prolixa insistência, mas a minha consciência me urge a dirigir-lhe novamente esta carta aberta com motivo de sua mensagem durante o Angelus do passado domingo 2 de novembro, do qual extraí os seguintes parágrafos, que coloco em itálico, e que comento a seguir.
Assim se manifesta o centro da preocupação de Deus: que ninguém se perca para sempre, que cada um tenha o seu lugar e brilhe na sua singularidade.
Deus poderá estar todo o preocupado que quiser, por isso; mas a questão é: é possível, de facto, perder alguém para sempre, ou seja: condenar eternamente?; se a resposta for sim, de que serve então a preocupação de Deus?; acaso o que tudo pode, não vai poder o que mais quer?; este assunto tentei resolvê-lo na carta que sobre a questão “de auxiliis” já lhe dirigi por este mesmo meio; mas voltei a mencioná-lo pela invulgar e invariável atenção que suscita, e o que ocorre, se a resposta for que não?: as consequências abordo-as mais adiante.
Como escreveu Bento XVI, a expressão “vida eterna” quer dar nome a esta espera insuprimível: não uma sucessão sem fim, mas o mergulho no oceano do amor infinito, onde o tempo, o antes e o depois deixam de existir. Uma plenitude de vida e de gozo: isso é o que esperamos e anelamos do nosso estar com Cristo (cf. Enc. Spe salvi, 12).
Alegra-me enormemente, que nem tudo tem de ser negativo, ler estas palavras suas, pois cairiam como uma luva para uma digressão sobre uma teoria que, vários anos atrás, enviei ao dicastério para a doutrina da fé, e cuja resposta ainda estou à espera, isso sim: bem sentado, que não é plano de se herniar, uma vez que já me espremi os miolos, e não sei se para algo útil; mas, como, seguindo a recomendação de Jack, o Estripador, é melhor ir por partes, deixo esse assunto, se se der a ocasião, para outra carta aberta, a menos que o meteoro o impeça.
A preocupação de Deus por não perder ninguém conhecemo-la desde dentro, cada vez que a morte parece fazer-nos perder para sempre uma voz, um rosto, um mundo inteiro. Cada pessoa é, de facto, um mundo inteiro. O dia de hoje desafia a memória humana, tão preciosa e tão frágil. Sem a memória de Jesus —da sua vida, morte e ressurreição—, o imenso tesouro de cada vida fica exposto ao esquecimento. Na memória viva de Jesus, em vez disso, mesmo quem ninguém se lembra, mesmo quem a história parece ter apagado, aparece na sua infinita dignidade.
Como é que a morte nos vai fazer perder alguém para sempre, se nós também não estaremos aqui para sempre?; o único que realmente nos faz perder alguém para sempre é a condenação, seja a nossa ou a dele.
Reduzi-lo tudo à memória soa tão vazio como essa frase batida e lapidar, nunca melhor dito, “Viverá para sempre no nosso coração”; acaso se pode chamar “vida” à imagem umbrátil que fica na memória, e que o tempo impiedoso se encarrega de ir desfigurando implacavelmente?; o que é então senão pura vaidade a glória que fica na memória?; por isso se dizia outrora que mais vale cão vivo que leão morto, e o do seu nome é simples casualidade, que Deus lhe conceda longos anos.
Espero que a dignidade infinita a que se refere não seja meramente natural, como a que aparece no documento Dignitas infinita, que aí segue, por certo, impertérrito no catálogo do magistério da igreja, onde pega como a um santo Cristo duas pistolas.
Este é o anúncio pascal. Por isso os cristãos recordam desde sempre os defuntos em cada Eucaristia, e até hoje pedem que os seus entes queridos sejam mencionados na oração eucarística. Desse anúncio nasce a esperança de que ninguém se perderá.
Se Dz 825 anatematiza a tese de que “o justificado está obrigado a crer de fé que está no número dos predestinados”, e, portanto, ninguém pode ter certeza de fé sobre a própria salvação, o que exclui também a certeza da perseverança final, a qual aparece condenada, salvo revelação especial, em Dz 826, como não considerar herética a afirmação de que se pode esperar que ninguém se perca, quando é evidente que a esperança de que ninguém se perca supõe a certeza de fé em que todos e cada um, perseverando até o fim, nos salvaremos?
Além disso, são Paulo diz, por um lado, que “a fé não é de todos” (2Ts 3, 2), e, por outro, que “sem fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11, 6); então como se pode dizer, sem contradizer o apóstolo, que todos, incluindo os que não têm fé, nem por isso pode agradar a Deus, se vão salvar?; como também se pode dizer, contrariando a Jesus, que claramente afirmou que nem todos deixaram de se perder, entre os quais nomeou expressamente o “filho da perdição” (Jn 17, 2), que ninguém se perderá?
Por último, se temos de esperar que ninguém se perca, mas que todos nos salvaremos, o que, afirmando-nos na certeza da salvação, impede todo temor real de condenação, como se poderá evitar a condenação que Dz 1525 fulmina contra os que negam que “o temor do inferno seja em si mesmo bom e proveitoso como dom sobrenatural e movimento inspirado por Deus”?
A gravidade deste ponto é tal que ultrapassa até a posição, já de si herética, do protestantismo, que defende a certeza da salvação, mas não para todos, como, em vez disso, aí se indica, mas só para os crentes, o que já supõe alguma restrição; o único comparável é a apocatástase, a qual, pelo menos também, reconhece uma condenação temporal, e ainda assim está, por sua vez, firmemente condenada por Dz 211.
Dz 705 diz, referindo-se aos hereges: “A quantos sentem de modo diverso e contrário, condena, reprova e anatematiza, e proclama que são alheios ao corpo de Cristo, que é a igreja”; mas, claro, quem terá a ousadia de dizer que o que precisamente aparece como cabeça não é sequer membro?; grande é, portanto, a minha angústia, embora por isso não me possa esquivar, pois isto é o que leio em Dz 271 e 274: “Se alguém (…) não rejeita e anatematiza, de alma e de boca, a todos os nefandíssimos hereges com todos os seus ímpios escritos até o último ápice, (…) esse tal seja condenado pelos séculos dos séculos, e todo o povo diga: Amém, amém”; só faltaria que todos se salvassem, menos o burro de mim; poderá então a insignificante poquidade deste sacerdote que já foi afastado do exercício do ministério público increpar ao que ocuparia a cátedra máxima?; mas acaso não é exatamente isso o que indica Dz 1105, que condena esta frase: “Embora te conste evidentemente que Pedro é herege, não estás obrigado a denunciá-lo”?; não me resta, em definitivo, outro remédio em consciência, pois eu sim temo o inferno, e não creio ter garantida a salvação, que, jogando-o tudo, cantar as quarenta até ao lucero do alba, embora seja reconhecido como “Pedro”, e por muito inferior que em comparação me sinta, pois já dizia o Doutor Angélico que, “no caso de que ameaçasse um perigo para a fé, os superiores deveriam ser repreendidos mesmo publicamente pelos seus súbditos, como são Paulo, sendo súbdito de são Pedro, o repreendeu em público” (Suma teológica II-II, q. 33, a. 4, ad 2).
Nota: A seguinte carta aberta expressa a opinião pessoal do seu autor. Publicamos o texto pelo seu interesse teológico e testimonial, exortando o leitor a recebê-lo com discernimento e fidelidade à doutrina e Magistério da Igreja.
