Santidade,
Como a leitura de sua mensagem na audiência geral celebrada por ocasião do sexagésimo aniversário da declaração conciliar Nostra aetate me causou sinceramente profunda inquietação, passo a expor, ao fio de suas mesmas palavras, que coloco em itálico, os questionamentos e reflexões que se foram suscitando em mim.
No centro de nossa reflexão de hoje, nesta Audiência Geral dedicada ao diálogo inter-religioso, desejo colocar as palavras do Senhor Jesus à samaritana: “Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade” (Jo 4,24).
É possível adorar realmente a Deus em religiões que não foram fundadas por Aquele que é sua Verdade, nem são guiadas por seu Espírito?
Este encontro revela a essência do diálogo religioso autêntico: uma troca que se estabelece quando as pessoas se abrem umas às outras com sinceridade, escuta atenta e enriquecimento recíproco. É um diálogo nascido da sede: a sede de Deus no coração humano e a sede humana de Deus.
Acaso toda religião é capaz de saciar a sede de Deus, que anida no coração humano?
No poço de Sicar, Jesus supera as barreiras de cultura, gênero e religião, convidando a samaritana a uma nova compreensão do culto, que não se limita a um lugar particular, mas que se realiza em espírito e em verdade.
Acaso Jesus veio, em vez de fundar a única igreja capaz de, administrando a graça redentora, dar culto em espírito e em verdade, declarar que todas as religiões sem barreira de nenhum tipo são válidas para isso?; certamente Jesus superou as barreiras de cultura e sexo, apresentando uma proposta que acabava com os limites entre povos e com as preeminências entre sexos; mas como se pode dizer que superou também as barreiras religiosas, se ele não veio estabelecer algo que rebasasse o âmbito religioso, mas a verdadeira religião que o cumprisse plenamente?; tanto é assim que sua mensagem é estritamente religiosa, que o primeiro passo ineludível, para aceitá-la, não é outro que a conversão, que supõe a transformação religiosa do homem, estabelecendo, por uma parte, a prioridade do religioso sobre tudo o mais, e, por outra, a ruptura com qualquer outro laço religioso, o que torna incompatível a opção por Cristo com qualquer outra adesão religiosa, que viria a ser uma idolatria e uma apostasia.
Este momento recolhe o mesmo sentido do diálogo inter-religioso: descobrir a presença de Deus além de toda fronteira e o convite a buscá-lo com reverência e humildade.
Acaso, além de toda fronteira, qualquer religião pode oferecer realmente a presença de Deus?, e se pode buscar a Deus, fazendo abstração de uma religião concreta?, o que vem a significar a relativização de todas as religiões, incluída aquela da qual o mesmo papa se apresenta como cabeça, e cujas abismais divergências as converteria a todas em impedimentos para uma ensalzada unidade que não passaria de indefinido sincretismo.
Este luminoso documento (Nostra aetate) nos ensina a encontrar os seguidores de outras religiões não como estranhos, mas como companheiros de caminho na verdade; a honrar as diferenças afirmando nossa comum humanidade; e a discernir, em toda busca religiosa sincera, um reflexo do único Mistério divino que abarca toda a criação.
Acaso em todas as religiões se pode encontrar um caminho para a verdade salvífica?; acaso o fato comum da natureza humana, que obviamente abarca a todos os homens, está por cima das diferenças religiosas, que, no caso da religião cristã, têm um evidente caráter sobrenatural?; então o sobrenatural é acessório e até negativo frente à igualdade de natureza?, e não supõe isso relativizar e até banalizar a essência sobrenatural do cristianismo?; além disso acaso todas as religiões permitem igualmente uma busca sincera da verdade religiosa, refletindo o único mistério divino?, e como se diz que este mistério abarca toda a criação, como se estivesse contido na mesma?; não haverá, mais bem, que dizer que o mistério divino supera infinitamente, que isso é transcender, toda a criação, para que se possa manter diáfana a eminência de Deus sobre todas as suas obras?, e resulta que esse mistério divino transcendente vai poder ser refletido e expressado adequadamente por todas as religiões, quando só uma: a católica, possui o conjunto de toda a revelação sobrenatural: Escrituras e Tradição eclesial?, ou resulta que agora a revelação sobrenatural é secundária frente à unidade da natureza humana?, que certamente poderá ser portadora da revelação natural, mas sem que se deva desconhecê-la que tal natureza ficou profundamente danificada pelo pecado original, o que, como até aqui ensinava o magistério, torna impossível ao homem, privado da ajuda da graça, discernir sem erro, e alcançar o caminho para a salvação; além disso como essa graça pode atuar desde as distintas religiões, se só a igreja católica pode ser seu autêntico canal?, tal como se afirma na tese de que fora da igreja católica, denominada assim “sacramento universal de salvação”, em quanto unida a Cristo como sua cabeça e sacramento fontal, não há salvação, já que, se a igreja não pedisse e intercedesse por todos os homens, nenhum se salvaria.
Mesmo se poderia aprofundar ainda mais, pois como é possível tratar de cobrir com a desfiada tela da natureza humana danificada as radicais e incompatíveis diferenças entre tantíssimas religiões, cujo mínimo comum denominador fica reduzido ao caráter misterioso que todas se atribuem, mas que chegam a entender de modo tão antagônico como inconmensurável entre si? Falar então de laços comuns em meio à absoluta disparidade entre as religiões existentes vem a ser uma mentira tão sarcástica como a vulgar comparação entre um ovo e uma castanha, quando estes seres biológicos compartilham, ao menos, uma forma mais ou menos esférica.
Ciertamente, pois ninguém escolhe onde nascer, se pode ser inculpavelmente ignorante da verdade salvífica da igreja católica; mas, em primeiro lugar, o juízo de tal situação corresponde a Deus, quem, querendo, como diz o apóstolo, que todos os homens se salvem, se encarregará de que o sol salvífico de Cristo não deixe sem iluminar de algum modo a nenhum homem que tenha vindo a este mundo; em segundo lugar, está também a norma moral que obriga a toda consciência a se formar objetivamente segundo os meios com que conte, e, em terceiro lugar, temos a grave obrigação que pesa sobre todos os seguidores de Jesus, de ser luz em meio ao mundo, para estender o anúncio do evangelho, já que a consequência imediata da consideração buonista de todas as religiões é a inutilidade total de algo tão intrínseco à essência da igreja, como é a missão evangelizadora; em efeito, se, como veio afirmar Francisco na Indonésia, todas as religiões não são mais que os distintos idiomas para nos comunicarmos com Deus, e os diversos caminhos que a este nos conduzem, que sentido tem se incomodar em incomodar os demais com as puñeteras exigências evangélicas, se já se diz que o corpo é um animal de costumes, e assim seria melhor deixar a cada qual, que a tudo se acostuma um, tranquilo e a seu ar, vivendo, como peixe na água, na religião que mamou?
Não esqueçamos que o primeiro impulso de Nostra aetate foi para o mundo judaico, com o qual são João XXIII quis restabelecer o vínculo originário. Pela primeira vez na história da Igreja se elaborou um texto que reconhecia as raízes judaicas do cristianismo e repudiava toda forma de antissemitismo.
Ainda repudiando sinceramente toda forma de antissemitismo, pode se ignorar a falsidade da identificação do judaísmo atual, de raízes talmúdicas, sumamente ofensivas para o cristianismo, com o judaísmo veterotestamentário?, ao que se acrescenta que, como afirma rotundamente o apóstolo, o verdadeiro Israel está formado por quantos creem em Jesus, reconhecendo-o como messias e único redentor.
O espírito de Nostra aetate segue iluminando o caminho da Igreja. Reconhece que todas as religiões podem refletir “um raio daquela verdade que ilumina a todos os homens” e que buscam resposta aos grandes mistérios da existência humana.
Como já ensinaram os pais da igreja, as sementes do Verbo podem se hallar por toda parte; mas pode isso significar, de fato, a normalização de todas as religiões?, o que suporia negar o princípio básico de que a igreja católica é a única não já só que possui a plenitude salvífica, mas também que foi querida realmente por Deus, como destinatária de sua revelação e como canal exclusivo de toda a graça ganha por Cristo, de modo que tudo o que de verdadeiro possuam parcialmente as demais religiões, é o que compartilham e até tomaram da igreja católica.
O diálogo deve ser não só intelectual, mas profundamente espiritual. A declaração convida a todos —bispos, clero, consagrados e leigos— a se comprometerem sinceramente no diálogo e na colaboração, reconhecendo e promovendo tudo o que é bom, verdadeiro e santo nas tradições dos demais.
Pode se estabelecer um diálogo realmente sincero e produtivo que, ao mesmo tempo que reconhece o verdadeiro e o bom, não señale também o errôneo e o desafortunado?
É evidente que, segundo o princípio de não contradição, os opostos não podem ser, ao mesmo tempo, verdadeiros, e então se poderá passar por alto o fundamento mesmo de toda lógica e assim de toda racionalidade, para lograr impor a verdade e bondade, amalgamadas, da enorme diversidade religiosa?; como não se dar conta de que, eliminando a racionalidade, se dinamita precisamente a única ponte que poderia facilitar o diálogo inter-religioso?, o qual necessariamente, para ser sério, deve se internar nas procelosas águas do debate, ou agora será que, enarbolando a bandeira da verdade, se chega ao cúmulo de desestimar tudo o que cheire a apologética?, e que verdade fica, em realidade, quando se eliminou o sentido que lhe dá a unidade, descoyuntada entre a caótica e amorfa variedade?, já que efetivamente, quando tudo se considera verdade, nada termina sendo verdade, mas tudo acaba despedaçado pelo voraz relativismo, cuja primeira vítima é a mesma verdade. O pior para o caso é que sem verdade não há nem Deus verdadeiro nem religião verdadeira, e o tão cacarejado diálogo inter-religioso vem a derivar em um diálogo de besugos, que encerra em uma jaula de grilos.
Em um mundo marcado pela mobilidade e a diversidade, Nostra aetate nos recorda que o diálogo verdadeiro afunda suas raízes no amor, fundamento da paz, da justiça e da reconciliação.
Como, fora da verdade, não há amor verdadeiro, e este não é outro que o sobrenatural que define a Deus mesmo, tal como foi revelado por Cristo, cabe um autêntico amor fora da fé nessa revelação?, ou equipararemos o amor cristão, que brota de Deus mesmo, com o que cada qual possa entender por amor, que é a palavra mais polissêmica?
Devemos ser vigilantes frente ao abuso do nome de Deus, da religião e do mesmo diálogo, e ante os perigos do fundamentalismo e do extremismo.
Se no paroxismo do relativismo já não há nada verdadeiro, que é todo uso do nome de Deus senão um abuso linguístico, carente de toda referência não já só real mas meramente portadora de sentido?, e em que deviene toda religião senão em um mero jogo de palavras, cuja pretensão de realidade, além do imaginário cultural coletivo, também seria um completo abuso?; que moral, tão necessária para a convivência interpessoal e social, se poderia então levantar sobre areias tão movediças?; em suma, dissolvida toda possível racionalidade, que freio fica já ao extremismo fundamentalista e fanático, se a única que pode iluminar à vontade, para que, por sua vez, embride a cega impetuosidade dos sentimentos, é a razão?
Nossas religiões ensinam que a paz começa no coração do homem. Por isso a religião pode desempenhar um papel fundamental: devemos devolver a esperança às nossas vidas, famílias, comunidades e nações. Essa esperança se apoia em nossas convicções religiosas e na certeza de que um mundo novo é possível.
De que servem ensinamentos que são radicalmente relativos?, e que sentido tem apelar às mesmas em nome da paz e do coração do homem, se estas mesmas noções divergem profundamente em cada religião?
Como se fala de esperança comum entre as religiões, se toda esperança se funda na fé, e esta é justamente a que distingue cada religião, de modo que tanta divergência haverá entre as distintas esperanças, quanta seja a da fé da qual dimane cada uma?
Mais grave, em todo caso, é que essa equiparação de esperanças dilui não só a sobrenaturalidade da cristã, mas também a transcendência de seu objetivo, como se vê no fato da redução à pura inmanência deste mundo, como se a religião fosse uma mera ferramenta ao serviço desta vida terrenal, ao estilo da medicina ou da política.
Conceber a religião como um ideário político que poderia chegar a conviver com outros dentro do marco de um certo consenso fundamental, é esquecer precisamente o caráter de sustrato radical que possui toda religião, e que a converte em uma autêntica cosmovisão, incompatível, por definição, com qualquer outra, toda vez que a primeira pretensão de qualquer religião é a do monopólio não já da força nem de um território mas de algo tão elemental como a verdade e a bondade; agora bem, uma coisa é advogar por um diálogo civilizado entre as religiões, que sempre será melhor que a imposição pela força bruta, e outra, reduzi-lo tudo ao diálogo por si mesmo, que assim fica esvaziado de todo conteúdo, e só consegue desativar todas as religiões, despojadas de sua doutrina, que é sua razão de ser; no entanto, o diálogo não pode ser um fim em si mesmo, mas deve ser um instrumento para a verdade, igual que o caminho não tem mais sentido que conduzir à meta, a qual desaparece, relativizada, quando o anterior é absolutizado, como ocorre na nova igreja sinodal, que o converte em um mero recorrido circular em que até fica eclipsado o maquiavelismo, pois não é já que o fim justifique os meios, mas que estes chegam a suplantar àquele.
Por último, não posso senão lamentar, desolado, que a igreja se encontre agora mesmo na tormenta perfeita: atacada não só pelos inimigos externos, mas também massacrada pelos internos, e desde um duplo fogo cruzado: o dos que a empurram, para prostituí-la ante o mundo, e o dos que a acusam de se haver já irreparavelmente prostituído com o mundo; assim, em suma, todos vêm em tropel, e gerando uma indescritível confusão, a destruir e negar a essência mesmo da igreja como corpo social visível que percorre toda a história em evolução orgânica, sem cortar as raízes que o unem àquele que é sua cabeça, e sem obstruir a seiva que recebe daquele que é sua alma; por isso frente a todos aqueles é perentório salvaguardar a identidade da única igreja católica reconhecível historicamente, e o único modo reside na chamada por Bento XVI “hermenêutica da continuidade”, impossibilitada, em todo caso, tanto pelos que rejeitam o concílio Vaticano II, como pelos que, dando a razão aos anteriores, o utilizam como coartada para a consumação da ruptura doutrinal efetiva.
