AS TRÊS VIDAS DE FREI LOPE DE OLMEDO (XXXIV)
Pilar Abellán OV
Passando pela localidade de Santiponce, chegando a Sevilha pela via da Prata ou pela antiga estrada de Badajoz, observa-se à mão direita um imponente mosteiro – fortaleza. Talvez não saibam o nome desse mosteiro, como me acontecia a mim quando, durante anos, realizei esse trajeto em diversas ocasiões. Pouco podia imaginar que anos depois o estudaria como o principal mosteiro de frei Lope de Olmedo na Espanha.
Trata-se do mosteiro de San Isidoro del Campo, que em 9 de julho de 2002 foi aberto ao público após um longo processo de restauração e valorização do núcleo medieval.
Já havíamos mencionado como os monges cistercienses que habitavam o mosteiro de San Isidoro del Campo foram despojados em virtude de uma bula concedida por Martinho V em 1429 a instâncias de Henrique de Guzmán, conde de Niebla, e substituídos pelos eremitas jerônimos de Lope de Olmedo” (P. J. Respaldiza Lama, 1996. “El monasterio cisterciense de san Isidoro del Campo”, Laboratorio de arte #9, pp. 23 – 47). E hoje vamos nos deter para rever a história deste conjunto monumental desde sua fundação até a saída dos monges cistercienses em primeiro lugar e, posteriormente, a chegada dos monges eremitas de frei Lope de Olmedo.
O prestigiado medievalista Martín Aurell, RIP, alertava para dois perigos fundamentais na elaboração de uma biografia histórica: por um lado, o psicologismo e, por outro, a irrelevância do personagem no relato dos acontecimentos. Corremos o risco de perder de vista frei Lope de Olmedo se nos aprofundarmos hoje no estudo deste magnífico mosteiro, tendo em conta que os documentos apontam que habitou nele durante apenas alguns poucos meses? Creio – e espero – que não, porque, embora seja certo que a passagem de Lope por este mosteiro foi fugaz, não o foi o carisma que imprimiu nele por meio de seus monges. Entende-se por “carisma” na terminologia eclesiástica a identidade espiritual de um instituto religioso. No caso da ordem monástica fundada por frei Lope de Olmedo, minha impressão é que, tivesse esta mais ou menos sucesso humano, está fielmente baseada na maneira de seguir a Jesus Cristo segundo são Jerônimo. E isso fica plasmado na arquitetura e nas pinturas monásticas.
Comecemos com a fundação de San Isidoro del Campo e seu período cisterciense. O professor Pedro José Respaldiza Lama, nas Atas do Congresso realizado em 2002 com a abertura do mosteiro após os citados trabalhos de restauração, explica como San Isidoro del Campo é um conjunto monacal fundado no início do século XIV com uma finalidade funerária, como panteão dos Guzmán. Foi ocupado primeiro por monges cistercienses. Reproduzimos as palavras textuais do professor Respaldiza Lama: “O origem do mosteiro esteve unida a tradições e lendas vinculadas a São Isidoro, insigne bispo de Sevilha, um dos pilares da cultura medieval do Ocidente, cuja figura foi enarbolada na cruzada de reconquista (o autor o chama “justificação ideológica da expansão dos reinos cristãos”) para o sul da Península Ibérica. O achado dos restos do bispo hispalense no lugar onde depois se ergueu o mosteiro e seu traslado a Leão recupera uma rota, o chamado Caminho Mozárabe que, partindo deste lugar, chegava até Santiago de Compostela, a antiga Vía de la Plata de origem pré-romana, que unia o vale do Guadalquivir com o Cantábrico.
San Isidoro del Campo foi fundado nas imediações da antiga Itálica, onde segundo a tradição São Isidoro de Sevilha havia criado um colégio e foram trasladados seus restos após a invasão muçulmana. Seu caráter de mosteiro fortaleza poderia surpreender em princípio, mas isso foi habitual na Idade Média e tem justificação tanto simbólica como funcional; em primeiro lugar, porque, no final do s. XIII – inícios do XIV, Sevilha ainda estava nas mãos muçulmanas.
Alonso Pérez de Guzmán e sua mulher María Alonso Coronel fundaram em 1301 o Mosteiro de San Isidoro del Campo, após conceder Fernando IV em 1298 o privilégio correspondente. O mosteiro foi entregue aos monges cistercienses de San Pedro de Gumiel de Hizán (Burgos) e seu prior possuía não só um poder espiritual equiparável ao de um bispo, mas também o poder temporal de um senhor feudal sobre suas posses, que incluíam a povoação de Santiponce, localizada às margens do Guadalquivir. O mosteiro cisterciense possui um marcado caráter fortificado, segue o esquema tradicional: em torno ao claustro articulam-se as distintas dependências e a igreja, na realidade duas adosadas, já que Juan Alonso Pérez de Guzmán, filho de Alonso Pérez de Guzmán, O Bom, mandou construir uma yuxtaposta à primitiva. Esta igreja fundacional se reservará para o culto monástico, enquanto que a outra estava aberta aos fiéis.
O presbitério do templo fundacional, além de sua função litúrgica, serviu como panteão dos fundadores e seu linage. Na carta de dotação do mosteiro proíbe-se expressamente o enterro dos monges ou de qualquer outra pessoa alheia à família, e igualmente que nenhum dos descendentes se situe entre o altar e os fundadores: Alonso Pérez de Guzmán, O Bom, e María Alonso Coronel. Assim, o presbitério e a nave do templo foram se ocupando pelos túmulos e lápides dos Guzmán; até que no início do XVII, pelas disposições do Concílio de Trento, que velavam pela preeminência da liturgia, colocaram-se em arcosólios laterais os túmulos e efígies dos patronos e retiraram-se os demais enterros, deixando livre o âmbito celebrativo (Respaldiza Lama, P. J., 2004. “San Isidoro del Campo (1301 – 2002). Fortaleza de la espiritualidad y santuario del poder”, em Atas… pp. 243 – 262).
No entanto, começado o século XV, a comunidade cisterciense de San Isidoro del Campo atravessava uma crise. Frei José de Sigüenza afirma que a disciplina monástica havia diminuído entre os cistercienses; e que se havia introduzido, “como sucede frequentemente, não só o desordem e a frivolidade no Mosteiro, mas também na Igreja. Por isso, o piedoso Conde de Guzmán, que cuidava da boa regulação de seu Mosteiro, escreveu à Santa Sé para obter a faculdade de quitá-lo aos Cistercienses e dá-lo aos Monges Jerônimos do novo Instituto do Venerável Lope (tom. 2 lib. 3 cap. 8 e Heliot, tom. 3 parte. 3 cap. 60). Norberto Caymi continua explicando a passagem do mosteiro dos cistercienses aos monges eremitas de frei Lope da seguinte maneira: “quando o Papa Martinho V, que reinava então, viu a declaração do Conde, sopesou suas razões e confirmou a verdade do assunto, alegrou-se imediatamente. E logo Lope foi posto em posse do Mosteiro por D. Afonso de Segura, Deão da Igreja de Sevilha. Ali Lope fez uma estadia mais longa que no Palácio Arcebispal (durante seu mandato como administrador apostólico da diocese), atendendo com o maior zelo que pôde ao governo dos monges, que em grande número se haviam posto sob sua disciplina, reduzindo a uma forma adequada as coisas que antes haviam ficado em estado de desordem, e fazendo-se exemplo vivo de santidade não só para os religiosos a ele sujeitos, mas também para o povo de Sevilha, que não deixava de admirá-lo em qualquer lugar em que se hallasse e em qualquer ministério, e assim de mirá-lo, que sabia combinar a observância do claustro com os modos de uma sede arcebispal”.
Como é habitual nos relatos historiográficos e documentais sobre Lope, nos encontramos ante uma imprecisão na narração de Caymi; porque embora o mosteiro tenha sido cedido a frei Lope de Olmedo mediante uma bula de 1429, não pôde tomar posse dele até 1431, como já havíamos mencionado. Assim o explica o professor Respaldiza Lama nas Atas do Congresso de 2004 (pp. 251ss): “os monges cistercienses abandonaram o cenóbio em 27 de setembro de 1431”. Se esta data é correta, podemos lançar uma hipótese sobre a possível entrada solene dos jerônimos no cenóbio três dias depois, em 30 de setembro, solenidade de São Jerônimo, uma data com um alto conteúdo simbólico para os monges.
San Isidoro del Campo era um mosteiro importante, junto à cidade de Sevilha. Nada a ver com a pequena edificação de San Isidoro de Acela, escondido na Serra de Cazalla, o ermo que queria frei Lope para seus monges. O professor Respaldiza Lama menciona acertadamente que “a identificação desta obediência com o mosteiro foi tal que a partir de sua entrada em San Isidoro del Campo (os monges eremitas de São Jerônimo) seriam conhecidos popularmente como os isidros”; denominação que pode ser hallada muito frequentemente na historiografia ao referir-se ao instituto monástico de frei Lope de Olmedo na Espanha.
A chegada dos jerônimos de frei Lope a San Isidoro del Campo significou o começo de um longo período de esplendor. Prova disso, afirma o professor Respaldiza Lama “foi a ampliação de suas proporções, diferenciando-se em torno ao núcleo fundacional diversos âmbitos, como o Claustro Grande com as celas individuais, a procuradoria, a botica, etc”.
Detenhamos-nos brevemente para fazer ênfase no tema das celas individuais dos monges jerônimos. Diferente dos beneditinos (e cistercienses), que dormiam em dormitórios comuns; ou dos cartuxos, que o faziam em pequenas edificações independentes, os monges jerônimos se caracterizaram (sempre que puderam, pois foram muitas as casas que receberam já edificadas) por espaçosas celas individuais distribuídas ao redor de um claustro, sublinhando a dimensão eremítica de seu monacato.
“O pátio dos Evangelistas ou da Hospedaria – continua o professor Respaldiza – possuía um marcado caráter de representação. Com sua decoração pictórica iniciou-se a transformação inicial do mosteiro; nela se mostra o vínculo entre o patronato de Henrique de Guzmán e a ordem jerônima, aparecendo seus emblemas heráldicos flanqueando a cena de São Jerônimo ditando seus ensinamentos aos monges. A decoração se completava com as figuras de diversos santos, composições mudéjares de laço, paños com roleos de acantos e a cena da Árvore da Vida.
O estudo sistemático das Sagradas Escrituras, seguindo o exemplo de São Jerônimo, foi um dos objetivos impulsionados pelos jerônimos “eremitas” de Lope de Olmedo – comenta Respaldiza Lama-, o que veio a produzir a longo prazo, devido à heresia protestante da sola scriptura, que em San Isidoro surgisse no início do século XVII um (desgraçado) foco protestante, que comportou a tradução ao castelhano da Bíblia por Casiodoro de Reina e Cipriano Valera, monges isidros.
O refeitório se situa em um espaço retangular que ocupa a ala ocidental do claustro, correspondente à obra primitiva do século XIV, que segue os postulados da arquitetura gótica burgalesa tão frequente em Sevilha. Sobre os muros de arquitetura ascética e espírito cisterciense, os monges jerônimos desplegaram um amplo programa iconográfico no final do século XV, décadas após o traspaso de frei Lope”.
Seguindo com as modificações na estrutura do cenóbio que introduziram os jerônimos, na sala capitular eliminou-se o segundo andar, onde esteve o dormitório comum cisterciense e realizou-se a decoração pictórica dedicada à vida de São Jerônimo das quais se conservaram as cenas de A imposição do capelo cardinalício, a Partida para a Terra Santa, São Jerônimo ditando aos monges, A aparição do leão e O roubo dos jumentos, enquadradas por uma estrutura arquitetônica de traça gótica.
Mais informação sobre as pinturas murais de San Isidoro del Campo neste artigo do professor Respaldiza Lama.
É importante aqui mencionar que, obviamente, todas estas obras e pinturas tiveram lugar na segunda metade do século XV, uma vez frei Lope já havia falecido. Portanto, embora seja certo que Lope habitou durante um período muito breve no cenóbio, não mais de alguns meses, como agora diremos, o carisma ou identidade espiritual de seu instituto transformou o conjunto monumental, imprimindo-lhe seu selo espiritual durante cento e cinquenta anos (até que Filipe II ordenou em 1567 que a Ordem de São Jerônimo absorvesse os mosteiros espanhóis de frei Lope de Olmedo).
Sobre a marcha de frei Lope do mosteiro da Arquidiocese de Sevilha (e, portanto, de San Isidoro del Campo), José Antonio Ollero Pina considera que “provavelmente, frei Lope de Olmedo ainda suportou o governo da diocese até os últimos meses de 1432”: “A versão piedosa diz que renunciou e frei José de Sigüenza afirma que se retirou a San Isidoro del Campo. No entanto, as causas de sua retirada deviam ir além de suas próprias inquietudes intelectuais. As reclamações de ajuda ao pontífice a pouco mais de um ano de seu nomeamento foram uma confissão de sua própria debilidade, e com Anaya aparentemente eliminado, seu substituto era algo que já estava decidido. Sevilha constituía uma peça demasiado apetitosa como para que pudesse se manter nela durante muito tempo” (Ollero Pina, 2007, p. 159 – 160).
Não é descartável, no entanto, embora Ollero Pina considere que frei Lope esteve em Sevilha até o final de 1432, que tenha partido antes. Governar a Ordem e a Arquidiocese devia ser sem dúvida demasiado pesado, especialmente lendo de Ollero Pina os contínuos problemas que lhe ocasionavam os partidários de Diego de Anaya. Tendo falecido seu amigo Martinho V em fevereiro de 1431, quem o nomeou para o cargo, Lope apresentou sua renúncia a seu sucessor, Eugênio IV, em 1432 e regressou a Roma, à casa generalícia de sua ordem, o mosteiro de San Alejo e San Bonifacio.
Pode seguir a série biográfica sobre frei Lope de Olmedo aqui.
